198 Livros, Eritreia

Livro da Eritreia – Gratitude in Low Voices | Projeto 198 Livros

Eu ainda não sei dizer se o que eu gosto mais nesse projeto de volta ao mundo em livros é revisitar países por onde já viajei ou se é descobrir algo novo sobre países que pouco sei. Quando vi que a Eritreia tinha sido sorteada, tentei puxar lá trás na memória o que eu sabia sobre esse país, qual contato eu já havia tido. E a única coisa que consigo lembrar, é que nos meus primeiros anos morando em Londres conheci um amigo de um amigo que era eritreu. Por sinal gente boa pra caramba, mas hoje em dia já não temos mais contato.

Na hora de escolher o livro a dificuldade que encontrei foi a escassez de livros que retratam a história do país que tivessem sido escritos por autores nativos. Acontece que a Eritreia é um país que passou por um longo período de guerra de independência quando finalmente obteve sua separação da Etiópia em 1993. No entanto, questões de direitos humanos, liberdade de expressão e democracia têm sido fontes de preocupação. O regime governante, caracterizado por seu controle autoritário, levou a um êxodo significativo da população e tensões regionais.

Na hora de escolher o livro, vi que tanto a brasileira Camila Navarro quanto a britânica Ann Morgan escolheram ler o mesmo livro para esse projeto. Porém, ao ler as resenhas das duas vi que o livro pouco falava sobre a Eritreia por ser mais um romance que retrata a vida de um refugiado eritreu na Arábia Saudita. Inclusive o autor, apesar de eritreu, emigrou para a Arábia Saudita ainda criança. Fato é que o livro não me despertou curiosidade. Eu queria ter um contato maior com a Eritreia. Foi aí que comecei uma pesquisa intensa de autores eritreus contemporâneos até encontrar algum que despertasse meu interesse e que seu livro tivesse sido escrito ou traduzido para o inglês.

Gratitude in Low Voices é um livro de memórias do eritreu Dawit Gebremichael Habte. Diretor de tecnologia da informação e infraestrutura na empresa americana Bloomberg. No livro, o autor nos conta a história da sua vida desde as primeiras memórias da infância, passando pela sua fuga da Eritreia para o Quênia por conta da guerra em seu país e seu asilo no Estados Unidos. O livro traz diversas referências históricas que estão documentadas caso o leitor queira conferir as alegações feitas pelo autor.

Nascido em Gejeret (uma pequena vila ao sul de Asmara, capital da Eritreia) Dawit não sabe ao certo o ano exato de seu nascimento. A mãe diz ser 1974 enquanto o seu pai tem certeza que foi em 1973. Porém, no começo do livro ele volta algumas décadas antes do seu nascimento para contar a história da Eritreia moderna. O que ele faz é nos dar um contexto para podermos entender o que estava acontecendo na Eritreia que culminou com o fato dele ter de fugir do país.

No ano de 1890, a Eritreia foi formalmente declarada uma colônia italiana. Foram assinados vários tratados com os britânicos (que se encontravam no Sudão), os franceses (que se encontravam no Djibuti) e o rei abissínio, Menelik II, definindo as fronteiras entre a Eritreia e a Etiópia tal como as conhecemos atualmente. Com a Batalha de Keren, em 1941, os britânicos expulsaram os italianos e assumiram a administração do país.

Na sequência, por volta do ano de 1950 os britânicos foram embora e com uma resolução da ONU no mesmo ano, a Eritreia foi federada com a Etiópia. A federação com a Etiópia deveria durar dez anos e os eritreus poderiam decidir o seu futuro através de um referendo. Em vez disso, os governantes feudais etíopes dissolveram a federação unilateralmente e anularam o parlamento eritreu. Vários massacres foram cometidos pelos etíopes em pequenas vilas eritreias, pois esperava-se que esta medida impedisse os separatistas de prosseguirem a sua campanha.

Embora a gênese da Eritreia moderna tenha sido semelhante à do resto de África, o que torna o caso da Eritreia único é o fato de os eritreus terem sofrido opressão e colonização brutais por parte de um vizinho africano. Das 53 antigas colônias europeias na África, a Eritreia foi o único país a quem foi negada a independência após a partida dos seus senhores europeus.

A Eritreia finalmente conquistou sua independência em maio de 1991 após décadas de luta armada e a custo de muitas vidas. Em seguida, no ano de 1993 a Eritreia fez um referendo supervisionado pela ONU em que o povo eritreu votou esmagadoramente a favor da independência e obteve o reconhecimento internacional em 1993. No entanto, as tensões com a Etiópia ressurgiram pouco depois devido a disputas relativas à demarcação de fronteiras e a acordos comerciais. Por esse motivo, os dois países se encontram ainda em conflito até os dias de hoje.

Eu gostei muito da primeira parte do livro. Nela, o autor nos conta sobre vários costumes eritreus, sobre lembranças da sua infância, a maneira como crianças são nomeadas, como as relações pessoais e familiares se desenvolvem, alguns festivais, entre outras coisas. Dá pra ter um contato inicial bacana com a cultura e os costumes do povo.

A parte da fuga do país me deixou bastante apreensiva, pois para ir até o Quênia ele teve de atravessar a Etiópia por terra. No caso, o país opressor ou como ele coloca “a barriga do monstro”. Nessa jornada ele passou por inúmeros perigos, desde dormir ao relento em um cemitério embaixo de muita chuva até ser preso por ter entrado ilegalmente no Quênia.

Esta história é o registro da saga de um jovem que enfrentou vários acontecimentos turbulentos na sua vida de imigrante longe da sua família e fora do seu país. Ela é contada por um homem muito bem-sucedido que enfrentou as vicissitudes da vida de imigrante em diferentes países e que finalmente se mudou para os Estados Unidos para construir uma vida familiar e de sucesso profissional. A sua história abarca histórias de muitas pessoas que fizeram o mesmo, no entanto, poucas foram tão bem-sucedidas e menos ainda foram registadas em livros.

Nesse livro, Dawit conta também a história da vida de outras pessoas, aquelas que cruzaram o seu caminho nessa jornada. Sempre que ele nos apresenta uma pessoa no livro, ele dá um breve resumo da história de vida daquela pessoa. Dawit se mostra muito grato com todos esses encontros. Na real o que ele acredita é que sem a ajuda ou a influência dessas pessoas em sua vida, ele provavelmente não estaria onde está. Daí o nome do livro, a tradução livre em português seria “Gratidão em Sussurros”.

Super recomendo a leitura desse livro por ser uma história emocionante, comovente e inspiradora. Uma recomendação extra: assista essa emocionante palestra sobre o livro que autor deu em um evento da Livraria do Congresso dos Estados Unidos.

Gratitude in Low Voices foi publicado originalmente em inglês em 2017. O livro está disponível em inglês na Amazon.

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